A PRINCESA DOS DRAGÕES

PRÓLOGO

_ Corra!
Tarini gelou ao ouvir o grito de Luke. Olhando para o céu, compreendeu a gravidade da situação. _ Não... Novamente, não!
Com uma velocidade espantosa, Luke se aproximou e a tomou pelas mãos, saindo em disparada pelo pequeno povoado onde o caos estava instalado. Pessoas corriam por todos os lados, desesperadas, tentando salvar a própria vida enquanto muitos tombavam mortalmente feridos. No céu, dragões voavam cuspindo fogo, causando terror.
Tarini e Luke correram em direção à floresta, sabendo que aquelas pobres almas só teriam alguma chance de sobrevivência se os dragões, seus implacáveis perseguidores, os seguissem. Guiados por uma força invisível, os monstros deixaram de atacar o povoado para perseguir o casal.
_ Mais rápido, Tarini, ou eles vão nos alcançar._ Reunindo forças, ela aumentou a velocidade enquanto desviavam de árvores, passavam por clareiras, pulavam troncos até finalmente chegarem à entrada da gruta, localizada bem no centro da pequena floresta. A Entrada era bem estreita, nenhum dragão conseguiria entrar, nem mesmo o fogo dos dragões os atingiria, pois a gruta era profunda e cheia de curvas, além de úmida. Ali estariam em segurança, pelo menos por enquanto.
Ambos sentaram-se exaustos. Ofegantes se permitiram alguns segundos de descanso antes de tentarem entender o que acontecera. Tarini sentia o coração querendo explodir dentro do peito. Sua alma sofria pelos aldeões inocentes brutalmente assassinados por sua causa.
_ Não se culpe, Tarini, mais cedo ou mais tarde eles iriam nos encontrar._ Tarini o olhou surpresa, era a primeira vez que o via tão sério. Ainda ofegante, murmurou:
_ Às vezes eu tenho a impressão de que você pode escutar meus pensamentos.
Luke forçou um sorriso, sua expressão estranha.
_ Como vamos sair daqui? _ Tarine perguntou, mas se calou ao perceber que algo estava errado com ele._ Luke, você está bem? _ Apenas o silêncio respondeu. _ Luke? _Ele se voltou e Tarini, ao encarar aqueles olhos azuis tão lindos que no momento transmitiam profundo sofrimento, finalmente entendeu o que estava acontecendo. _ Não... Luke, Não!
_ Sim... _ Ele murmurou quase sem forças._Está começando ... _Ele fez uma pequena pausa para juntar fôlego. Falar naquele instante resultava extremamente doloroso._ Tarini, você precisa me deixar. Pelos fundos da gruta existe uma saída, os dragões não vão te encontrar. Vá.
_ Resista Luke! _ Ela se recusava a partir sem ele, preferia a morte a perdê-lo._Eu sei que você consegue. Você é forte! Não se deixe dominar por essa maldição. _ Ela engoliu um soluço e continuou com a voz suplicante _ Você já venceu outras vezes, vença uma vez mais por mim...
Luke a olhou demoradamente como se pedisse perdão. Sabia que daquela vez não conseguiria resistir. Era o fim. Exausto, respirou fundo enquanto lentamente colocava um punhal nas mãos trêmulas de Tarini. _ Sinto muito, não posso mais. Você precisa me matar antes que eu me transforme em um monstro e mate você...


1º Capítulo

_ O senhor mandou me chamar?
Tarini parou tensa em frente ao trono real. O rei Assuero, nunca fora um pai afetuoso, desde pequena se acostumara a evitá-lo. Quando seu pai mandava chamá-la sabia que deveria se preparar para o pior, pois as notícias jamais seriam boas.
_ Luke foi contaminado.
_ O que?! _ Tarini sentiu as pernas fraquejarem quando ouviu a voz fria de seu pai dar a terrível notícia como se estivesse simplesmente falando sobre o tempo.
_ Sinto muito, mas o casamento de vocês está cancelado. Sempre achei ridícula sua insistência em se casar com um simples subordinado. Confesso que estou aliviado por livrá-la dessa insanidade._ Ele fez uma breve pausa e prosseguiu._ Luke foi banido de nosso reino e há essa hora já deve estar longe.
Tarini sentiu repentina vertigem. _ Papai, diga que é mentira _ Ela se recusava a pensar que seu próprio pai fosse capaz de banir o homem que ela amava e com quem estava prestes a se casar. _ Por favor, diga que é mentira.
O rei Assuero simplesmente deu as costas enquanto replicava.
_ Você sabe que jamais minto. O assunto está encerrado. Retire-se.
Tarini demorou um instante para perceber que seu pai a expulsava da sala. Viu quando os guardas se aproximaram para fazer a ordem real se cumprir, desalentada levantou as mãos impedindo-os de avançar e, com passos incertos, saiu da sala em direção ao enorme pátio do castelo.
_ Luke... _ Tarini ficou alguns momentos parada em meio ao pátio sem se importar com os soldados em pleno treino de guerra a poucos metros dela. Seu corpo tremia. Não podia desabar, não podia simplesmente sentar e chorar, não era dessa forma que os problemas se resolviam, precisava pensar e, principalmente, agir. Tarini demorou algum tempo para se recompor. Pouco a pouco se acalmava e as idéias começavam a se ordenar, a confusão mental lentamente dava lugar à obstinação. Antes que pudesse mudar de idéia, pôs-se a correr. Determinada, avançou até um dos soldados, tomou seu cavalo, montou e avançou até os limites do castelo. Aos gritos ordenou que os portões fossem abertos.
Mesmo sabendo que provavelmente morreria caso deparasse com uma das inúmeras feras que habitavam seu mundo, Tarini forçou o cavalo a galopar com todas as suas forças adentrando a escuridão que caia lentamente despertando terríveis feras noturnas. Nem por um instante pensou em desistir, nem cogitava a idéia de dar meia volta e se esconder na segurança de seu castelo. Não voltaria atrás. Luke precisava dela!

***

Infectado. Luke não podia acreditar que fora vitima de traição. Caíra em uma armadilha ao tentar ajudar seu soldado a fugir de um dragão sem suspeitar que ele mesmo já houvesse se transformado em uma das feras.
_ Você agora é nosso, capitão Luke! _ A aberração rira, a voz tornava-se cavernosa à medida que se transformava em um ser monstruoso._ Em breve será como nós.
Afastando as terríveis lembranças, Luke olhou uma vez mais a enorme ferida em seu braço esquerdo. O veneno do dragão corria em suas veias, podia sentir.
Dragões. Há anos lutava contra eles, agora estava amaldiçoado, logo se tornaria um dos seres que tanto desprezara.
Sua terra, Argron, era povoado por bestas das mais diferentes espécies, porém os piores e mais temíveis eram os dragões. Ninguém sabia ao certo de onde haviam surgido muito menos como derrotá-los. Luke, há anos comandava vários homens com a missão de exterminá-los, tarefa praticamente impossível, pois bastava um guerreiro ser ferido pelas terríveis garras dos dragões que caiam mortos ou, em poucos dias, se tornavam como eles. O número de dragões triplicara nos últimos 10 anos, e agora ele também seria uma aberração.
_ Luke! _ Ele se voltou sem querer acreditar no que seus olhos estavam vendo._ Luke! Sabia que o encontraria! _ Tarini pulou do cavalo se atirando no pescoço dele.
Luke a afastou com brusquidão. _ Você não deveria estar aqui sua tola irresponsável! _ Tarini arregalou os olhos assustada com a ira na voz do noivo. Ele continuou cuspindo as palavras com ódio_ Tenho certeza que seu pai disse com todas as letras que estou infectado!
Tarini ficou alguns momentos sem saber como reagir. Aquele homem agressivo não podia ser o mesmo que há dias atrás fazia juras de amor. _ Você jamais me fará mal. _ Ela começou, sem saber direito o que falar._Mesmo que se transforme em uma fera, sei que jamais me fará mal.
_ Farei! _ Ele gruiu, descontrolado_ Acredite, eu farei! Agora mesmo sinto vontade de matá-la por sua estupidez! Como se atreve a sair do castelo para vir atrás de mim! Por que fez essa loucura?
_ Porque eu te amo._ A declaração simples o desarmou por um instante, tempo suficiente para Tarini se aproximar e abraçá-lo. Entendia a confusão e ira de seu noivo, qualquer um em seu lugar estaria da mesma forma abalada. Sentia a tensão nos músculos dele, pressentia a força descomunal que ele fazia para se controlar. _Eu te amo, Luke, e não vou te abandonar. Nós vamos encontrar a cura, tenho certeza que em algum lugar deste planeta deve existir uma cura..._ Não terminou a frase porque Luke já se afastava a passos largos determinado a deixá-la para trás. Com certeza os soldados do rei já estavam no encalço da princesa Tarini, ela não ficaria desprotegida.
_ Eu não vou deixar você fugir! _ Determinada ela o acompanhou apressada completamente esquecida do cavalo que a trouxera até ali._ Capitão Luke D´traler, acredite, você não vai se livrar de mim!
Luke ouvia os gritos dela sem diminuir o passo. A ferida em seu braço formigava e parecia a cada minuto maior. O melhor que Tarini poderia fazer seria retornar à segurança de seu castelo e esquecê-lo de uma vez por todas. Era perda de tempo se agarrar a falsas ilusões, jamais soubera de alguém que fora curado. Estava condenado.

***
_ Senhor, creio que não há mais nada que possamos fazer, se nos dispersarmos os dragões nos destruirão.
O rei Assuero mesmo contrariado teve que concordar. Não podia se arriscar a enfraquecer a segurança de seu povo para enviar vários homens em busca de Tarini.
_ O que podemos fazer?
_ Infelizmente, majestade, sua filha está à mercê da própria sorte.
Novamente seus conselheiros tinham razão. Sabia que Tarini amava o tal capitão, ela fizera o maior estardalhaço até convencê-lo a deixá-la se casar com Luke, mas jamais pudera imaginar que ela faria a loucura de abandonar tudo para se arriscar entre as feras em busca de Luke. Se ela não morresse pelas garras dos monstros que habitavam a floresta, certamente morreria pelas mãos de Luke, que em poucos dias seria ele mesmo um monstro.
Apesar da dor que sentiu no coração, teve que se conformar. A vida de Tarini estava agora por conta do destino.
_ Tarini, porque foi fazer essa burrice? Homem algum vale tamanho sacrifício. _ Murmurou para si mesmo. Apesar de não demonstrar, a amava como se fosse sua própria filha. Dispensando seus conselheiros, pôs-se a esperar o ataque que certamente aconteceria. Uma hora depois estranhou o silêncio. Já era noite e os dragões ainda não haviam atacado. Estranho... Nos últimos 20 anos os dragões não deixaram uma única noite de tentar destruir seu castelo, razão pela qual não pode dispor de algumas dezenas de soldados, se enfraquecesse, todos morreriam. O povoado há anos tivera que abandonar os campos para viver próximo ao castelo. A comida era escassa, pois dispunham de pouco espaço para a plantação e criação de animais. Sobreviviam como podiam.
Caminhando pensativo, chegou até a imensa janela de seus aposentos. O céu estava limpo, cheio de estrelas, nenhum sinal de dragão. Estranho, muito estranho. Aos poucos sua mente inteligente começou a fazer algumas conexões que antes pareceram insignificantes, mera coincidência, porém agora sentia que podia ser mais do que isso.
Antes do primeiro ataque há 20 anos, raramente era visto um dragão pelas proximidades e eles nunca haviam feito mal a ninguém. Em uma noite apareceram aos montes, furiosos, atacando, destruindo, matando quem estivesse a sua frente.
Olhou novamente para o céu, nada. Aguardou. Nada. Dragão algum se aproximou aquela noite.
Abaixo podia ver os soldados assombrados, pela primeira vez em anos, experimentavam uma noite de paz.
Curioso... Tarini não estava ali, os dragões também não estavam.
Tentou se lembrar da primeira vez em que os dragões apareceram furiosos, aos montes, querendo matar todos que viviam no castelo. Sim, lembrava com clareza, seus ataques começaram poucos dias depois que Luiza, sua esposa, encontrara um embrulho próximo aos portões do castelo, surpresa descobrira ser um bebê e emocionada, adotara aquela criança como se fosse sua própria filha. Tarini fora uma benção na vida de uma mulher que jamais pudera gerar filhos.
O rei Assuero arqueou as sobrancelhas em uma expressão de surpresa. Os dragões jamais atacaram sem razão. Procuravam algo. Caçavam algo. Por algum motivo totalmente encoberto ao seu conhecimento, os dragões estavam incansavelmente empenhados em destruir Tarini!


2º Capítulo

_ Dragões! _ Tarini não podia acreditar, os dragões deveriam nesse instante estar atacando o castelo, não voando na direção deles!
Luke finalmente parou. Não se sentia bem. A ferida em seu braço parara de crescer, mas agora ardia. Sentia tontura, náuseas, estava ligeiramente febril. Ouviu o alerta de Tarini e rapidamente olhou ao redor procurando um esconderijo. _ Venha!_ Tomou Tarini pelas mãos e entraram em um tronco oco de uma enorme árvore velha.
Em silêncio ficaram observando enquanto os dragões sobrevoavam em círculos bem acima deles. Pareciam procurar algo. Quando finalmente foram embora, Luke e Tarini puderam relaxar. Saíram do tronco apertado esticando os músculos.
_ Que estranho Luke. Os dragões não deveriam neste momento estar atacando o castelo de meu pai?
_ Talvez existam mais dragões, não apenas as duas centenas que vemos todas as noites.
_Talvez... _ Tarini estava com uma sensação estranha, porém preferiu se calar. Não queria preocupar Luke, no momento sua prioridade era a saúde dele. Reparou no belo rosto, agora pálido e banhado em suor._ Precisamos encontrar um abrigo.
Caminharam por alguns minutos até encontrar uma pequena gruta. Quando pararam, Tarini desvestiu-se da longa capa que trazia junto ao corpo para protegê-la nas noites extremamente frias de Argron e estendeu-a no chão improvisando uma cama. Com cuidado ajudou Luke a se deitar. Ele respirava com dificuldade quando Tarini o envolveu melhor na capa para tentar aquecê-lo e conter o tremores que se intensificavam.
A noite ia alta, lá fora se ouvia novamente o som das asas dos dragões batendo, voando perto da gruta.
_ Por que os dragões não foram embora?
_ Eles querem você.
Tarini não havia percebido que falara em voz alta, mas a resposta inesperada de Luke a Surpreendeu. Assustada, olhou para seu noivo.
Os olhos de Luke brilhavam enquanto a pele aos poucos assumia um tom avermelhado.
_ Luke! _ Ela sabia o que estava acontecendo, ele estava se transformando em dragão!
Luke contorceu-se de dor. Seu corpo pareceu rasgar-se enquanto uma fúria incontrolável o invadia à medida que sua nova natureza exigia libertar-se. Seria fácil entregar-se àquela dor lancinante que o consumia, dilacerando-o, destruindo qualquer resquício do homem que um dia fora.
Tarini o observava retorcer-se. Precisava sair dali, Luke iria se transformar, mas, se ela escapasse do dragão à sua frente, certamente não escaparia dos dragões que estavam lá fora. Horrorizada, viu a transformação acontecendo. Os olhos de Luke brilhavam ainda mais, na boca cresciam presas enormes, suas mãos davam lugar à monstruosas garras, seu corpo brilhava intensamente ganhando volume. Então, quando achava que já estava perdida, Luke deu um grito ensurdecedor e em seguida tudo ficou no mais absoluto silêncio.
Quando seu coração voltou a bater num ritmo normal e sentiu suas pernas suficientemente fortes para poder caminhar, Tarini se aproximou do corpo inconsciente de Luke.
A batalha havia sido ganha. Luke conseguira bravamente resistir à terrível transformação.



***


Lydia acrescentou outro ponto ao tapete _ introduziu a agulha no fino tecido de linho, deslizou o fio duplo de seda através da trama, puxou a ponta formando um nó apertado e desceu a faca afiada num corte perfeito.
O início do lago _ até onde as visões a haviam conduzido. O misterioso lugar que aparecia em seus sonhos sempre, todas as noites, desde que grande estrela desaparecera.
E que ela estampara no magnífico tapete que tomava forma pouco a pouco.
Primeiro, surgira a silhueta das altas escarpas e o caminho estreito que levava ao início do desfiladeiro. Em seguida, detalhes das montanhas, dos picos nevados, dos reflexos azulados sob o pálido sol nascente.
Durante os últimos vinte anos, ela dedicava parte de seu dia a trazer à luz a paisagem que perseguia suas noites e penetrava seus sonhos sorrateiramente. Um lugar distante, desconhecido, mas que parecia muito real, que a atraía, parecia querer contar segredos.
Esse era o talento de Lydia: a habilidade de criar imagens e cenários de tirar o fôlego com linhas, tecido e tinta. Ela fabricava seus próprios fios e tecidos, e os corantes com que os tingia, usando tudo que a natureza selvagem oferecia. Lydia conhecia todas as flores, ervas e raízes do Vale da Donzela, a densa floresta que cercava as rústicas cabanas de madeira do vilarejo. A floresta era uma mãe generosa mas severa. Fornecia a seu povo tudo que precisavam para seu sustento, tal como tinha sido desde o início. Porém, podia ser implacável com aqueles que não respeitavam suas leis: os tolos e ambiciosos, que apareciam vez que outra em busca de glória e de riquezas.
Ela aprendera, como todos os que viviam à sombra da Crista da Estrela, a cadeia de montanhas que separava seu reino das Regiões Mortas, que eram hóspedes ali, por tanto tempo quanto os Deuses permitissem, que a floresta ofertava suas dádivas aos puros de coração e que tudo que tinham poderia ser tomado num átimo, se estes fossem os intentos do Universo.
Como acontecera um dia, em tempos passados, muito antes que Argron fosse um reino poderoso e seus exércitos dominassem toda a terra plana. Um tempo esquecido quase, de que apenas os anciãos ainda falavam, ao redor da lareira, enquanto enchiam os cachimbos do fumo perfumado de Zata, o taberneiro. Um tempo de abundância e promessas, soterrado por rochas incandescentes, cinzas e sangue.
Já mal o povo de Argron se lembrava de sua grandeza, já mal conseguiam sobreviver em época tão sombria, ameaçados pela fome e pelo terror, o terror que começara com o primeiro ataque dos dragões e que roubara a alegria de sua gente com a chegada da princesa. A partir de então, viviam aterrorizados, apinhados em torno do castelo e sob a proteção da guarda real. O pequeno vilarejo onde Lydia e sua família viviam era a última fronteira livre de Argron, onde os monstros ainda não haviam aparecido, graças às montanhas e à floresta que os abrigavam.
Ainda não.


***


Atrás da muralha de rocha e gelo, o sol erguia-se, lançando tons rosados sobre o véu escuro acima das estrelas. A lua ainda resistia em seu posto, recusando-se a partir antes da hora determinada. Breve, a silhueta negra da Crista da Estrela surgiria delineada contra o horizonte, apontando seus picos brancos para cima.
Mais além, do outro lado da cordilheira, localizava-se o Vale da Donzela e o pequeno vilarejo isolado do reino de Argron.
Ou assim Godo ouvira falar. Nem ele nem sua gente jamais haviam atravessado as montanhas, penetrado as fronteiras de Assuero. Tudo o que se estendia do lado de cá da Crista ficava no domínio das Regiões Mortas_ terras amaldiçoadas, proibidas aos visitantes e estrangeiros. Nenhum habitante do reino de Argron ou das longínquas Torres Vermelhas, refúgio dos povos das águas, aventurava-se pelos traiçoeiros labirintos de seu lar. Não nesta era. Houve tempos de paz e alegria, tempos em que caravanas de mercadores apontavam com frequência na descida do Paço da Águia, um dos dois acessos seguros pelas montanhas. Tempos de fartura.
Agora, Godo e seu povo viviam da caça e das raízes e cogumelos amargos que brotavam nos estreitos e sombrios caminhos entre as pedras. E do chá mentolado das folhas da castanheira azul, único cultivo que florescia no terreno arenoso do lugar. E tudo que conheciam era a desolação e a fome, companheira constante de todos que restavam condenados naquela terra erma. Um destino que não tinham escolhido, contra o qual não puderam lutar. A esperança há muito deixara seus espíritos e o auxílio não era mais esperado, não depois que sacerdotisa se fora _ a criança roubada ao nascer, última remanescente de estirpe sagrada, a linhagem de seus ancestrais _ e, com ela, o talismã, o poderoso Olho do Dragão Negro.
Godo preparou a arma, afiou a lâmina fina e certeira _ ouvira o ruído abafado das patas do animal. A carne dura e viscosa alimentaria sua família por semanas e ainda poderia repartir um pouco com os demais. Ele estava faminto, o estômago latejando com a dor familiar e debilitante, que o acompanhara por toda vida. Esgueirou-se silenciosamente, com a destreza e a agilidade de um grande caçador, a mão firme, apertada em torno da madeira lisa da lança. Os olhos treinados distinguiram a couraça cinzenta da presa, as narinas inflaram-se com o cheiro nauseabundo da saliva do animal. No espaço de um segundo, o silvo agudo cortou o ar seco e frio, e um guincho de fúria e desespero reverberou nas encostas escarpadas, devolvendo o lamento da besta ferida num eco sombrio.
A respiração pesada e arfante chegou aos ouvidos de Godo. A caça consumia suas derradeiras forças na luta para escapar à morte próxima. Ele levantou-se, caminhou sem pressa até onde jazia o animal agonizante, as sandálias deslizando sobre o cascalho miúdo sem ruído, sem deslocar as pedras e a poeira, o andar leve e gracioso de um predador feroz. Era assim que Godo se sentia sempre que sua lança rasgava a carne da caça. Não gostava de matar. O imenso lagarto das cavernas, que fazia seu passeio antes da aurora, também em busca de alimento, fixou as íris amarelas sobre ele, um olhar triste e súplice, o mesmo olhar que Godo vira tantas vezes em outras criaturas e também em seus irmãos que terminaram vencidos pela fome e pela doença, como sua mãe, como sua amada Mia.
O caçador puxou a lança num movimento brusco, esfregou a ponta ensanguentada na terra arenosa e, com um impulso, ergueu o lagarto sobre o ombro. O contato com o ventre ainda pulsante do réptil, cuja vida se esvaía lentamente, enviou uma corrente de fogo pelo corpo de Godo, um sentimento de pesar e compaixão que abraçou seu coração com um aperto de aço.
Godo suspirou. Segurou a lança em uma das mãos enquanto sustentava sua pesada carga com a outra. Tinha um longo caminho à frente _ quilômetros de poeira seca, ventos gélidos e paisagens devastadas. Quando avistasse a primeira cabana, o sol já estaria no meio do céu, emprestando um pouco calor àquele mundo esquecido e estéril.



3º Capítulo


_ Para onde estamos indo? _ Luke e Tarini caminhavam a dois dias. Por sorte os dragões não voltaram a aparecer apesar de Tarini ter a sensação de que eles não estavam muito longe.
Não esquecera a estranha resposta de Luke: “ Eles querem você!”, porém ao longo daqueles dias de jornada, Luke parecia cada vez mais distante, por isso não tivera oportunidade de questioná-lo para saber a origem daquela afirmação.

_ Estamos indo a um pequeno vilarejo protegido pelo Vale da Donzela. Lá existe uma mulher chamada Lydia, dizem que ela é uma espécie de bruxa, talvez ela possa nos ajudar.

_ Eu pensei que esse lugar não existisse de verdade, parece incrível que os dragões ainda não os tenham atacado como fizeram com todos os outros vilarejos.

_ Talvez os dragões nem saibam que o lugar exista, ele fica bem escondido, eu mesmo só o conheço porque fui pessoalmente, a mando do rei, buscar todos para se juntar a nós nos arredores do palácio. Inacreditavelmente, os aldeões não concordaram, recusaram-se a deixar suas escassas terras, o único lar que sempre conheceram. Além disso, diziam-se sentir seguros ali. _ Luke fez uma pequena pausa antes de completar_ Com alguma sorte chegaremos antes do anoitecer.

A noite era o horário mais penoso para Luke. Por dias ele vinha resistindo à transformação, parecia um milagre o mal já não tê-lo dominado por completo. A ferida em seu braço esquerdo sumira completamente, contudo coisas estranhas aconteciam. Ele parecia enxergar muito bem no escuro, de vez em quando seus olhos brilhavam por uma fração de segundo logo voltando à tonalidade normal. Sua força parecia maior apesar do abatimento que por vezes curvava seus ombros. A pele de Luke já não era tão branca quanto antes, os olhos azuis pareciam ainda mais azuis, apenas os cabelos negros pareceram não sofrer alteração.

Tarini olhou seus próprios cachos vermelhos que caiam até a cintura. Seus cabelos estavam horríveis, ela estava horrível! Precisava urgentemente de um bom banho. Seus olhos verdes fixaram-se, pensativos, em Luke. Ele era tão lindo apesar da aparência exausta. Durante os dois dias em que estavam caminhando ele nem sequer segurara suas mãos. Luke evitava qualquer contato físico, deixara claro que não queria mais nada com ela e só não a abandonava à própria sorte por medo que ela fosse morta por alguma das feras selvagens espalhadas por Argron. Pelo menos isso mostrava que ainda se importava com ela. No fundo sabia que Luke sentia-se imundo, indigno de receber seu amor.

Tarini sentia falta do Luke amante, do Luke apaixonado sussurrando palavras de amor em seu ouvido. Sentia falta de seu toque, de suas carícias, de seu amor. Faria tudo para ter seu Luke novamente.

_ Logo estaremos lá _ Luke disse abruptamente_ assim que eu tiver algumas respostas, seguirei meu caminho sozinho. Você ficará no vilarejo, tenho certeza que alguma alma generosa concordará em abrigá-la por alguns dias até seu pai a encontrar.

_ Não! Eu vou com você! Eu... _ A voz de Tarini morreu na garganta quando Luke a encarou com um olhar feroz.

_ Você fica! Se não ficar juro que eu mesmo a entregarei às feras selvagens!

Luke voltou a caminhar pisando furiosamente as pequenas pedras do caminho íngreme por onde passavam. Tarini ficou alguns instantes sem esboçar qualquer reação. Ele estava mudado, em algumas ocasiões chegava a ser cruel e mais uma vez deixava claro que não queria mais saber dela. Aquele definitivamente não era o seu Luke, mas sabia que bem no fundo o homem honrado, generoso, apaixonado ainda existia.

Determinada endireitou os ombros e o seguiu. Uma vez mais prometeu para si mesma que não retrocederia, iria até o fim, encontraria a cura para Luke ou morreria tentando, porém jamais desistiria!


***


Assuero serviu-se da bebida aromática e fumegante, o chá de ervas que tanto apreciava. Sentia-se desassossegado desde aquela noite em que as feras não haviam aparecido para aterrar sua gente. Desde a partida de Tarini.
Se as bestas aladas não atacavam o castelo e a estreita faixa de terras adjacentes às pesadas muralhas de pedra _ a pequena fortaleza a que ficara reduzido o antes poderoso reino de Argron _, era porque perseguiam sua filha.
Sim, afligia-se por ela também. Seu coração de pai estava angustiado. Mas, antes de tudo, ele era um rei, um líder, suas obrigações para com seu povo vinham em primeiro lugar.
Há dias viviam sob aquela calmaria inquietante que precede as tempestades. Como se a escuridão absoluta estivesse sempre à espreita, pronta para reclamar o que lhe pertencia. Era apenas uma outra forma de terror, o terror do desconhecido, da incerteza do amanhã.
O rei não se lembrava mais de como tinha sido antes da chegada dos monstros _ os tempos de glória e paz há muito tinham abandonado as vastas fronteiras de seus ancestrais.
O som das passadas ágeis aproximando-se da sala da guarda trouxe-o de volta à realidade. Apesar dos protestos dos conselheiros, instruíra seu comandante a enviar batedores em segredo, tão longe quanto pudesse, para obter qualquer informação possível sobre Tarini e Luke, presumindo que os dois estavam juntos, o que era de se esperar, considerando que a princesa partira em busca dele.
Assuero levou a taça de barro aos lábios, deitou um generoso gole de chá pela garganta e aguardou.
_ Meu senhor...
_ Sim.
_ Um dos homens acabou de retornar com notícias.
_ Continue.
_ Não posso afirmar com total certeza, mas creio que a princesa estará seguindo para as montanhas.
Assuero virou-se, os olhos fixos, sem expressão.
As montanhas ficavam no ponto mais extremo do reino, a última fronteira de Argron antes das Regiões Mortas _ terras ermas, desoladas, cercadas de perigos. Não imaginava o que Tarini poderia pretender dirigindo-se para lá.
_ E Luke? _ perguntou.
_ Tudo leva a crer que caminham juntos, meu senhor.
Ele inspirou profundamente. O sangue latejou na nuca, anunciando uma onda aguda de dor. Sabia o que o comandante omitira, mas que estava em sua mente naquele instante. Luke fora contaminado e seu corpo já teria sido tomado pela fúria da besta que o atingira. Ninguém seria capaz de resistir à transformação por tanto tempo. No entanto, Tarini ainda estava viva e Luke permanecia ao lado dela, o que, por si só, era surpreendente.
_ Onde foram avistados?
_ Próximo às antigas nascentes do rio, junto às cavernas dos nômades.
Os dois homens encararam-se, em silêncio.
_ Como pode ser?, indagou, as fundas rugas em torno dos olhos acentuando-se, sombreando os olhos sagazes.
_ Também me perguntei, senhor.
Assuero engoliu o resto do chá. Voltou-se para a ampla janela, contemplou o horizonte distante, pintado de nuvens baixas, carregadas de chuva.

***

A alvorada não trouxe conforto para Tarini, ou descanso para Luke.
Por mais que ele insistisse para que ela se afastasse, usando da persuasão à rispidez, por mais que a rechaçasse de todas as maneiras, chegando perto do descontrole, levando Tarini às lágrimas, não pôde demovê-la. Tarini seguiu atrás dele, determinada, inflexível, com a têmpera de um guerreiro. Em meio ao turbilhão de sentimentos e sensações que atravessavam a mente e o corpo de Luke naquele momento, seu peito foi tomado de orgulho e respeito por ela, fazendo-o sentir diminuído e indigno. Ao ver o belo rosto vermelho e marejado, seu coração ficou dilacerado. Decidiu, mais do que nunca, lutar, lutar como louco, com toda sua alma, para manter o controle de si mesmo, lutar contra o veneno que corria em seu sangue, contra a maldição que ameaçava roubar sua humanidade.


***


Lydia dormiu um sono tumultuado, despertando durante a noite seguidas vezes com a respiração entrecortada. Presa do mesmo sonho que a acompanhava há anos, desta vez, as imagens da enigmática passagem entre montanhas confundiram-se com o rosto de uma mulher, uma mulher muito jovem, quase uma menina, com olhos de uma tonalidade de azul próxima à cor da luz que refulgia nas encostas banhadas de branco. A jovem surgia no meio do espelho de água que se avistava ao final da descida do desfiladeiro _ o lago _, ferida, manchada de sangue. O olhar feroz emitia chispas de ódio, enquanto as mãos machucadas empunhavam um objeto metálico.
E sempre que ela retomava o sono agitado, a mesma imagem ocupava seu cérebro, invadia sua visão, como se estivesse agarrada ao fundo dos olhos, gravada em suas retinas.
Lydia lançou um olhar melancólico para a tapeçaria acomodada sobre a larga cadeira revestida de pele de carneiro. Hoje, seus hábeis e esbeltos dedos de tecelã não seriam ocupados com linhas e nós.
Não avançara em seu sonho.
Sabia que a mulher que surgira em seu sonho não pertencia àquele lugar, era forasteira ali, à procura de algo, talvez precisando de ajuda, de sua ajuda, ou não apareceria para ela, não à noite.
Lydia apanhou a capa de lã, a cesta e suas facas. Fechou a porta da cabana e saiu. Amanhecia, o orvalho impregnava o ar e a terra. O perfume levemente almiscarado das rosas silvestres espalhava-se com a brisa que soprava da Crista.
Victor ainda dormia quando ela avançou rumo à orla da mata. O Vale da Donzela esperava por suas mãos delicadas e seus olhos atentos, pronto para encher a velha cesta de tesouros. Desbravar as entranhas da Floresta era uma das paixões de Lydia.
As outras eram tecer tapetes e estar com Victor. Não nessa ordem, porque seu amor pelo marido vinha em primeiro lugar. Sempre.

***

Luke acordou Tarini, tocando suavemente em seu rosto úmido, ainda marcado pela trilha de lágrimas.
Os sonhos de Tarini, nas poucas horas de sono que se puderam permitir, tinham sido assombrados pelo medo. Mais de uma vez, Luke foi despertado com o som de seu choro convulsivo, fazendo com que pulasse do leito de folhas secas tomado de pânico, o sangue congelado nas veias ante o pensamento de que ela estivesse sendo atacada ou ferida. Terminou mudando de ideia e deitou-se junto a ela, apertando o corpo delgado e trêmulo contra p peito, afagando seus cabelos a cada nova onda de choro.
Não importava que tivesse passado toda a noite em vigília, velando o descanso de Tarini, porque não conseguiria mesmo fechar os olhos. Nem seu corpo reclamava de cansaço, nem suas feridas o incomodavam mais. A estranha transformação que operava dentro dele também lhe concedia estranhas habilidades, resistência e força. Seus sentidos não eram mais humanos. Podia enxergar, ouvir, sentir muito além de qualquer guerreiro ou mortal.
O que trazia um novo inconveniente. Fora bastante fácil ignorar a presença de Tarini durante os primeiros momentos de sua batalha contra o veneno que se introduzira em sua carne. Mas não agora. Agora, cada um de seus sentidos apurados percebia a mulher encolhida em seus braços, ansiava por cada parte dela. Seus músculos estavam retesados, a pele parecia ter encolhido, o coração pulsava acelerado e a parte mais sensível de seu corpo voltava à vida desesperadamente.
Tarini não notou a ausência de Luke, não se deu conta do movimento rápido, felino, que o colocou de pé, ou de seus passos velozes, ou do mergulho de algo pesado e maciço na água gelada do riacho.
Quando ergueu as pálpebras, Luke estava curvado sobre ela, os dedos frios alisando sua face, os olhos implacáveis fixos em seu rosto. Um olhar que ela nunca vira antes. Podia reconhecer a fagulha do desejo contido, do calor ardente que se desprendia daquele olhar quando pousava sobre ela, mas havia um furor desconhecido, como que se um ser maligno habitasse o homem que amava. Um ser escuro, perigoso, instável.
Tarini não se deixou amedrontar, manteve a respiração ritmada, levantou-se devagar, aceitando a mão de Luke para apoiar-se. A náusea ameaçou invadir suas entranhas no instante em que se viu de pé. O corpo doía-lhe em cada ponto, as bolhas nas solas dos pés ardiam e mandavam correntes de dor por suas pernas fatigadas. Tinha a nítida impressão de que ia desabar no solo e ficar ali, inerte, pelo resto de seus dias. Deus, como estava exausta. Apenas a intervenção rápida de Luke impediu que ela desfalecesse. Ele manteve os braços ao redor de sua cintura, emprestando sua imensa força aos músculos esgotados de Tarini.
_ Você precisa comer alguma coisa _ ele disse.
Tarini começou a rir, uma risada histérica, insana. Comida. Ela nem sabia mais o que isso significava. Curioso, de todas as sensações que se misturavam e combatiam entre si dentro de seu corpo, a fome era a mais condescendente de todas. Porque seu estômago não se revoltava mais. O enjoo e a ligeira tonteira eram os únicos sinais de que seu invólucro humano, o que restava dele, necessitava de alimento.
Luke esperou que descontrole e o tremor de Tarini passassem. Sabia que seus nervos haviam sido esmigalhados nos últimos dias, mas ela ainda resistia heroicamente. Conteve o riso. Por mais absurdo que tudo aquilo parecesse, foi assaltado por uma imensa vontade de rir diante da aparência e da teimosia de Tarini.
A beleza ímpar continuava ali, sob a sujeira, os arranhões, os cabelos emaranhados e o que restara da fina seda do vestido, rasgada em vários lugares.
Ela virou-se para ele, séria.
_ Encontrei frutas e água adiante. Pode andar? _ Luke perguntou, a expressão divertida. A tensão que estivera em seu rosto antes dissipara-se em parte.
_ Posso andar, eu acho _ ela respondeu, controlando um impulso de irritação, ao ver que ele estava prestes a rir, incapaz de imaginar o que naquela situação absurda poderia ser engraçado.
_ Venha _ ordenou ele.
Os dois dirigiram-se para a esquerda, seguindo o que sobrara de uma trilha entre os altos arbustos.
As roupas de Tarini sofriam no meio dos ramos, espinhos e galhos retorcidos. A cada novo rasgo no tecido macio, ela rangia os dentes. Não demoraria muito e estaria coberta de andrajos, praticamente despida. A imagem emprestou um brilho de rubor à pele pálida. Suspirou aliviada por Luke ir à frente e não ter percebido seu constrangimento. Não que o fato de ficar nua diante dele fosse algo que a amedrontasse, pelo menos antes de tudo acontecer. Mas, agora, sem que pudesse explicar por quê, sentia-se tímida e envergonhada, temerosa de ver-se rejeitada como mulher.
O pequeno riacho e o ruído monótono e apaziguante da água corrente caiu como um básamo sobre Tarini. Luke estava agachado junto à margem, colhendo o precioso líquido em uma folha.
_Beba _ ele falou, voltando-se para ela. _ A água é boa e limpa.
Ela aproximou-se e se acomodou sobre os joelhos dobrados. Levou os lábios até onde Luke sustinha a folha e sorveu o líquido fresco e delicioso em pequenos e ávidos goles. Tarini desequilibrou-se e seus lábios resvalaram, tocando os dedos ásperos de Luke. Com a outra mão, ele segurou seu ombro e a afastou, indiferente à reação que o toque visivelmente provocara em Tarini.
Ele não podia permitir-se fraquejar. Não era mais um homem, não totalmente. A besta dentro dele, ou o que quer que estivesse se apoderando de sua mente e de sua carne, não poderia jamais tocar Tarini.
Ela fitou Luke por longos segundos. Não havia revolta, dor, ou ânsia no belo semblante. O azul profundo de seus olhos denotava unicamente resignação e entrega.
O som abafado vindo da vegetação cerrada em volta, atraiu a atenção de Luke que, imediatamente, pôs-se em guarda, todas as fibras de seu ser prontas para revidar um ataque iminente.
O movimento intempestivo de Luke jogou Tarini sentada no chão, estupefata. Seus sentidos mortais não haviam captado coisa alguma, mas girou a cabeça desgrenhada na direção que, aparentemente, seria a origem da ameaça que Luke pressentira.
Menos de um minuto de expectativa silenciosa passou antes que a silhueta miúda e esguia, envolta numa capa de tecido grosso, assomasse em seu campo de visão.
A mão muito alva e bem-feita puxou para trás o capuz, revelando uma mulher de cabelos negros e lisos, muito compridos, atados numa trança.
Luke relaxou os músculos, enquanto Tarini esforçava-se para ficar ereta sobre os pés doloridos. A mulher não era propriamente bela, tinha traços comuns, olhos escuros, boca larga de lábios descorados. Mas a força que emanava dela era esmagadora, exalava um poder paralisante, misterioso, tão antigo quanto o tempo. Aquele rosto podia salvar ou condenar uma alma ao inferno.
_ Sejam bem-vindos à nossa terra. Eu sou Lydia, mulher de Victor, filha de Mara, a curandeira _ falou, a voz firme e cristalina, acolhedora, maternal.
Luke limpou a garganta. Ainda hesitava um pouco, seus instintos de soldado dominando-o, mas sentia uma inexplicável simpatia pela mulher, uma confiança que o deixava inseguro. Notou que ela olhava para ele, um sorriso nos lábios, como se soubesse exatamente o que ele pensava.
_ Eu sou Luke, e esta é Tarini. Estamos caminhando há dias. Precisamos de abrigo e comida. Temos como pagar...
_ Eu sei _ ela interrompeu, o olhar pousando em Tarini. _ Poderão ficar em nossa casa. Temos água e alimento e uma boa cama junto ao fogo. Não queremos seu dinheiro.
Luke engoliu em seco. Sentiu-se desconfortável ao imaginar que poderia ter ofendido a mulher.
_ Não quis...
_ Não se preocupe. Eu vejo seu coração. É um homem justo.
Lydia ainda contemplou o casal por mais alguns instantes, antes de virar-se para retornar pelo caminho através da densa floresta ao fundo.
Ao notar que o homem e a jovem não se mexiam, acenou.
_ Sigam-me. Nossa aldeia fica depois do rio. Temos uma hora de trilha pela frente _ explicou.
Então, como se de súbito tivesse se dado conta de um detalhe importante, acrescentou:
_ Estão em condições de prosseguir? Vejo que a jovem está machucada. Posso trazer os animais, se precisarem.
_ Nós a seguiremos _ Luke respondeu.
Lydia fitava Tarini, como se não estivesse bem certa.
_ Não se preocupe, eu a carregarei, se for preciso _ acrescentou.
Tarini empertigou-se. De modo nenhum chegaria carregada à tal aldeia como se fosse uma inválida.
_ Não será preciso _ retrucou ela, lançando um de seus olhares raivosos para Luke.
Viu, pelo canto do olho, que a mulher sorria.
Luke sacudiu a cabeça, num gesto de rendição e encaminhou-se para onde Lydia aguardava. Tarini foi logo atrás, decidida, teimosa, usando os derradeiros vestígios de resistência para manter-se acima da dor, da fadiga extrema, da dormência que se infiltrava sorrateira, dominando, sem esforço, ossos, carne, tendões e músculos.
Não poderia se lembrar depois quando perdeu a consciência e Luke a amparou contra o peito, nem de ter sido levada nos braços de ferro de seu noivo até o vilarejo escondido sob a proteção da Crista da Estrela.
Durante toda a jornada, Lyda não conseguiu afastar o rosto da jovem de sua mente. Conhecia aqueles olhos. Eles a visitaram em seu sonho daquela noite.




4º Capítulo

_ Senhor, eles fugiram. _Dragor gruiu de seu trono soltando faíscas pela boca deformada. O espião ficou tenso, era perigoso ver seu mestre furioso._ Desculpe senhor, mas foi o que aconteceu._ Falou em um tom firme. Seu mestre era cruel, não exitaria em fulminar um simples espião, ainda mais se desconfiasse que esse simples espião era o irmão da princesa Tarini, consequentemente herdeiro legal do reino que Dragor usurpara.
_ Incompetentes! _ Bradou Dragor _ Quero aquela garota morta! Morta!
Elliot usou todo seu auto controle para não pular no pescoço daquele ser repugnante. Estava a anos infiltrado entre os escravos de Dragor. Precisava descobrir seu ponto fraco para destruí-lo._ O capitão Luke conseguiu até agora resistir à transformação e inexplicavelmente mantém sua mente bloqueada para os demais dragões. Ninguém consegue ler sua mente.
Elliot era um dos únicos que fora poupado do terrível destino de se tornar dragão, não por bondade do rei. Dragor precisava de pessoas comuns para se infiltrar entre os povoados, servir como espiões. Um dragão jamais poderia manter um forma comum por muito tempo, era incrível o controle que Luke conseguia manter sobre si mesmo.
Elliot ainda era criança quando seus pais foram mortos. Seu pai sempre temera pela vida de seu primogênito, portanto sempre o escondera colocando um sósia em seu lugar em ocasiões importantes onde era mecessário aparecer em público, fora o sósia que morrera em seu lugar, portante dragor jamais poderia supor que Elliot ainda estivesse vivo usando o nome falso de Micai. Lembrava perfeitamente como conseguira fugir desapercebido pela passagem secreta levando Tarini, ainda um bebê. Após dias de viagem, a havia deixado em frente aos portões de um reino distante. Tinha esperança que não iriam fazer mal a um bebê e fugiu retornando anos mais tarde, já adulto, para se juntar aos escravos de Dragor.
_ Vá, Micai. Espero da próxima vez você traga boas notícias. _ Falou em um tom sombrio. _ Vá!
Elliot se curvou e saiu. Sua raiva meticulosamente camuflada em humilde servidão.

***

(continua)